Quem leu Tlön, Uqbar, Orbis Tertius de Borges lembra-se de que o conto começa falando de um mundo fictício, projetado às expensas de um milionário ateu, e termina com a descoberta, chocante, de que aquele mundo começava a invadir o nosso, fazendo com que a realidade cedesse e lhe abrisse espaço, de tal sorte que um dia nosso mundo se tornasse Tlön. O conto é muito bom, muito fascinante e, sempre achei, tem mais humor do que geralmente se lhe credita.
Esse conto tem, com vinte e tantos anos de antecipação, todo o leitmotiv da obra de Philip K. Dick: a realidade que cede, ou a realidade que nada tem de real. Talvez por isso alguém disse, com evidente exagero, que Dick foi o Borges da Ficção Científica. Não foi; para ser o Borges de qualquer coisa é preciso, primeiramente, escrever bem, e Dick escrevia mal. Abusava de frases relatoriais e clichês idiotas de FC (“meus sensores indicam que…”). E, apesar disso, suas histórias são tão estranhas que acabam prendendo a atenção.
“Ubik” só havia saído, há muitos anos, em edição portuguesa da Europa-América. O título não engana ninguém: fala de ubiqüidade. Apenas, a estende ao ponto de realmente incomodar. Conta a história de um bando de paranormais que caem numa emboscada (não fica claro qual o objetivo dessa emboscada) e que são mantidos, como é praxe no contexto da história, congelados num estado de semi-vida. O patrão deles tenta fazer contato com suas consciências, enquanto a realidade que conhecem (e que não é realidade: são as imagens que suas mentes guardaram do mundo) vai cedendo, e o tempo começa a recuar. Nesse processo, seu patrão se torna ubíquo: a cara dele aparece no dinheiro, eles o vêem na TV, mensagens dele surgem pichadas em paredes de banheiros e em pacotes de cigarros tirados aleatoriamente de supermercados em cidades distantes. No final do livro, entendemos, junto com o paranormal restante, que eles estão mortos; porém uma coisa estranha acontece com o patrão, e começamos a desconfiar de que ninguém mais sabe quem está realmente morto e quem não.
Em “O homem do castelo alto”, a Segunda Guerra foi vencida pelo Eixo. Os Estados Unidos estão divididos em três pedaços: a costa oeste é província japonesa, a costa leste é província alemã, e uma faixa central se mantém independente (e irrelevante) a duras penas. Os japoneses da costa oeste colecionam a pop art vagabunda pré-guerra: gibis do Super-Homem, bolsas da Betty Boop, garrafas originais de Coca-Cola. Um sujeito enriquece vendendo isso a eles. Ao mesmo tempo, um escritor da faixa central lança livros de fantasia cujas histórias se passam num mundo onde o Eixo perdeu a guerra. E o vendedor de tranqueiras se perde nesse mundo (o nosso?) por alguns minutos: a realidade dele cede (à nossa?).
A editora Aleph, que lançou esses dois, vai lançar no ano que vem o mais estranho dos livros dele (dos que li, bem entendido): “Os três estigmas de Palmer Eldritch”, no qual esse senhor do título se transforma, sob condições especiais e não inteiramente compreensíveis, em Deus.
Dick era louco. Começou a ter alucinações a uma certa altura da vida, e acreditava que sua mente tinha sido invadida por uma forma superior de inteligência. Coemçou a achar que vivia duas vidas simultâneas, uma no seu tempo, como Philip K. Dick, e outra no século I, como um cristão perseguido pelos romanos. Ficou paranóico, achando que a KGB e o FBI queriam matá-lo; depois, se dizia possuído pelo espírito do profeta Elias. Morreu, compreensivelmente, de derrame cerebral.
Falei de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, mas na verdade acho que Dick está mais para Pierre Menard. A este, Borges atribuiu uma lista de obras que era “um diagrama de sua história mental”. Parece que é exatamente o caso de Dick. Borgeano, mas pela porta dos fundos.
P. S. tardio (17/09/09): leio na página 164 da edição brasileira de “Valis”, da Editora Aleph, uma referência à afirmação de Schopenhauer de que o gato que brinca hoje no jardim é o mesmo que brincava há trezentos anos. É a mesma citação que Borges faz no ensaio “O rouxinol de Keats” (in Outras inquisições; Companhia das Letras, 2007, p. 137/141). Virão daí – dessa pequena coincidência – as comparações?
10 comentários
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23 agosto 2009 às 3:37 pm
Silésio Roldão
Philip K. Dick é muito querido dos conspiracionistas.
23 agosto 2009 às 3:54 pm
Caio Marinho
PSA: link pra short story do Borges: http://www.coldbacon.com/writing/borges-tlon.html
24 agosto 2009 às 7:54 am
Orlando
Sim, Donato. Embora os conspiracionistas não se unam nem na cadeia. Porque, né?, para cada conspiração, uma cadeia distinta.
Em inglês, Caio Marinho?
24 agosto 2009 às 12:10 pm
Yan
Só makumbeiros se unem na cadeia, segundo alghuns!
24 agosto 2009 às 3:57 pm
Yan
Era isso que o K. Dick escutava:
24 agosto 2009 às 7:37 pm
Breno
nunca li nada do p.k. dick, só assisti aos filmes baseados em suas histórias (blade runner, minority report, o homem duplo). ele criava boas tramas, não? verdadeiros imbroglios, que fazem desconfiar que a realidade é apenas um truque do olho. já leu william gibson? recomendo o neuromancer (em inglês! não perca tempo com traduções).
abraço,
24 agosto 2009 às 10:24 pm
Orlando
Segundo alguns ex-macumbeiros, Yan? 😉
Li William Gibson sim, Breno, justamente o Neuromancer, mas traduzido em pt-pt: “O Neuromante”. E outro cara bem louco chamado Tim Powers, com viajantes do tempo que se reconheciam assoviando canções dos Beatles. Meu preferido é o velho Kurt Vonnegut Junior: “Café da manhã dos campeões” é bom, e mutcho luêco.
25 agosto 2009 às 8:55 pm
Breno
estou ensaiando pra ler vonnegut. se acontecer, então será esse desjejum.
25 agosto 2009 às 9:38 pm
Yan
Puerra, nunca li nada disto, Orlando. me dê a fonte. Ninguém é ex-macumbeiro, na verdade, sempre queremos saravar, mas ultimamente eu mesmo ando dando razão prá essa tese.
26 agosto 2009 às 10:50 am
Orlando
Você vai gostar, Breno. Tem também o Matadouro 5, que não é bem FC: fala da destruição de Dresden. Muito bom.
A fonte disso tudo, Yan Kaô, era o Gilberto Schoereder, com quem infelizmente não falo há muito tempo. Ele tinha e tem tudo.